segunda-feira, 30 de abril de 2012

Sapatos novos





Numa esquina qualquer de abril, ela deixou a atenção que ele não lhe deu, os telefonemas que não retornou, e a vontade inútil de vê-lo com vontade dela... Largou a espera, como se fosse uma caixa vazia, nos desvãos das horas perdidas e irrecuperáveis. "O que não foi é porque não deveria ter sido", resignou-se. Viu que já era maio, com suas ruas claras e seu cheiro de flores. Sem mais vontades urgentes, olhou a paisagem de festa e viu as respostas do tempo em seus sapatos novos... Ficou alguns minutos em silêncio, depois jurou que teria muito cuidado para não perdê-los na escadaria errada mais uma vez!

AílaSampaio 





Ser e estar




Entre o SER e o a ESTAR, 
o tempo constrói permanências e transitoriedades; 
infinitivos pessoais e afetos que ficam ou que passam. 

O que eu SOU não muda de casa... 
O que eu ESTOU é que tem vários endereços.

AílaSampaio 





sábado, 28 de abril de 2012

Mais e menos




Eu precisava que ele fosse menos um pouco... menos dentro dele mesmo e mais do mundo. Que tivesse menos paciência pra ficar atrás da janela e saísse ao sol pra ver o que acontece. Eu precisava que ele desaprendesse as rebeldias das olhadas de soslaio e da sua poesia, pra que fosse mais comum e mais fácil de ser focado pelas minhas lentes. Eu precisava dele amanhecendo, como botão que se abre em flor sem medo do vento... eu precisava que ele fosse mais meu quando fosse.... e que não desistisse tão fácil  de estar nas minhas vontades e urgências.

AílaSampaio

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Insincera manhã




O azul profundo dos teus olhos atravessou a minha noite e pôs o mar em minhas mãos, em pleno deserto, mas a insincera manhã de sol que furou a cortina, como uma onda que quebra na praia, me acordou antes que o nosso amor pudesse chegar até o amanhecer...
AílaSampaio 



Espólio



Tudo o que fomos reduz-se, hoje, a lembranças soterradas no fundo de uma caixa, onde, entre fotografias, bilhetes e presentes de viagens, nosso amor  morre no anonimato; seca como as flores que recebi no meu último aniversário (com a promessa de primavera eterna em pleno outono). Já não ouço os Cds, não leio os livros, não uso os brincos nem vejo as cenas de felicidade impressas em papel colorido. Guardei tudo no fundo do armário, para que os meus olhos não alcancem os vestígios do que fomos um para o outro; para não nos ver morrendo sem testemunhas, protagonistas de uma história da qual o mundo nunca desconfiará... 

AílaSampaio

sábado, 21 de abril de 2012

Palmas ou as vaias





Daquela menina que se escondia com medo da vida restou muito pouco. Não houve como guardar sua falta de vontade para as coisas do mundo nem decidir que tudo seria do seu jeito. Ela logo foi descoberta imitando Penélope pra enganar as exigências que o tempo ia acrescentando aos seus dias e nada mais lhe restou: pegou os fios da manta que não conseguiu tecer em silêncio e pespontou o destino de Sherazade com sua audaz artimanha de sobrevivência. Não escolheu ir pra guerra, não escolheu o combate armado nem desarmado, nunca pensou em empunhar bandeiras... tudo lhe foi colocado nas mãos sem perguntas... ela apenas obedeceu às ordens do destino, pois entendeu cedo que lutar contra ele apenas adiaria o processo, jamais o arquivaria, isentando-a de  cumprir a sentença. A vida é bem isso: colocar o improvável em cena e aguardar as palmas ou as vaias.



AílaSampaio

quarta-feira, 18 de abril de 2012

O vento



Ele tinha o cheiro esverdeado do sereno que molhava a paisagem quando ela pela primeira vez o abraçou e sentiu como se entrasse num bosque de madrugada. Os olhos dele, da cor da escuridão da noite, arrancaram a claridade da manhã de dentro dos dela e juntos amanheceram fora do tempo, dentro apenas deles mesmos. Não imaginaram que o vento passaria tão cedo para levar as cores e os cheiros, para enterrar tudo no tenebroso silêncio dos que só têm lugar no passado. 


AílaSampaio

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Admito

Eu te amei sim, posso te responder agora. Até ontem eu tinha receio de admitir isso, por conta do teu tépido suspiro. Eu queria calor ou frio e tu ficavas a cozinhar em fogo baixo. Com a minha intensidade, não havia jeito de dar certo. Não tenho paciência pra lentidão, indecisão, nem pra estar triste, conjecturando sentimentos, medida deles, coisas assim tolas, mas incômodas. Ficar longe de ti foi possível e necessário, mas saber que não nos teremos mais nem qualquer dia é olhar um mundo incolor, é baixar a voltagem da vida. Posso admitir não. Acabo de colocar as roupas de volta no armário e vou ficar esperando que tu me inventes outra vez... mas vou esperar do lado de dentro, pra não correr o risco de me molhar quando o próximo inverno vier. Até lá, por favor, não me tire o sono nem o fôlego com seu beijos bem resolvidos. Não quero correr o risco de morrer antes do tempo.



AílaSampaio

terça-feira, 10 de abril de 2012

Quartos escuros

 

Tenho meus quartos escuros e, quando estou cansada, me tranco lá e não quero saber da luz do sol. É preciso estar bem pra enxergar a luz como claridade. Se estou mal, ela me encandeia.

É necessário desertar; é uma questão de sobrevivência a fuga da rotina de extraviar-se e ter que continuar andando. Temos o direito a nos desmontar de vez em quando, deixar que os cacos se espalhem, mesmo que dê trabalho juntar todos depois; mesmo que nunca mais consigamos juntar todos do mesmo jeito, mas teremos movimentado a nossa engrenagem, provado da nossa impotência, da nossa incapacidade humana, da nossa desnecessidade de ser infalíveis.

Sou assim, feita de remendos e retalhos; às vezes a costura fica à mostra; noutras, a tinta demora a secar, a cola escorre, mas, entre um recorte e outro, preparo os ouvidos para a ordem inevitável: "Levanta-te e anda!". É quando abro a porta, coloco as inquietações entre parênteses, e vejo a claridade do dia amanhecer-me para uma nova mesma história.


Aíla Sampaio

Intervalo



É  fácil andar pelas ruas iluminadas dos outros, sentar à sua mesa farta, beber do seu vinho, comer dos seus queijos. Difícil é percorrer seus becos escuros, ser generoso com sua fome e sua sede quando a mesa está vazia. Entre o dia de sol e a noite enluarada há sempre um hiato de penumbra, um risco de escuridão para que,  no devir das situações, as verdadeiras faces se revelem e saibamos quem somos nós, quem são os outros.  É no intervalo entre a gargalhada e a lágrima que mora a verdade de cada um.

AílaSampaio

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Cada um sabe

Quase sempre amanheço no meio da noite sem sequer ter dormido. Não há barulho na rua, mas há ruídos por dentro, cárceres tão privados que só os pensamentos ousam entrar. Tantas vontades jogadas pelo ralo, desperdício de afetos enviados a destinatários inaudidos, senão malditos pela sina do coração encouraçado. Quem sabe o que faz o medo do amor é o sofrimento insuportável. Cada um conhece os seus calabouços e o peso da própria alma. Ainda na distância, esqueço a carta devolvida com o carimbo de 'endereço errado' e penso nele, visto-o com palavras e desenho o dia de sol ainda que chova. É assim o amor, um soco na razão. Explicar se há escolha? Quem há de...?

Aíla Sampaio

Apenas desnecessário




Ele passa os dedos em meus cabelos como quem penteia vontades insussurráveis antes da meia-noite. Gosto desse passeio dos nossos olhares que se encontram em silêncio, das surpresas do destino que me fazem íntima do inesperado... Renascemos em nós mesmos quando nos permitimos nascer no outro, sem medo da felicidade que até pode nem alcançar a luz do dia, mas nos alcançou antes de nos perdermos em nós mesmos.
AílaSampaio

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Vestígios




Ela resolveu, finalmente, apagar os vestígios da passagem dele pela sua vida: deletou o nome da agenda, os e-mails ternos, depois tão tensos, e os sms lacônicos enviados no meio da noite. Jogou fora todas as rolhas de vinho que colecionavam desde o início do namoro e trancou todas as fotos aonde devem descansar as alegrias efêmeras. Só não conseguiu apagar da memória o instante primeiro em que os olhos dele alcançaram os seus, e o que sentiu ao entender que as suas almas se reconheceram e se beijaram sem um toque... sem uma palavra sequer, naquela tarde de outubro que perdura até hoje em seus pensamentos.



AílaSampaio