Piso o asfalto molhado sem sapatos e saio a correr sobre as lembranças
que o cheiro de chuva me traz. Sou outra vez a menina do meu pai,
descabelada e austera, disfarçando as lágrimas em sorrisos para não
perder a pose. Ah, como chorava atrás da porta aquela menina para que
nem ela mesma visse! Como demorou a admitir sua alma azul, sua
delicadeza de pássaro sem asas! Cobria com silêncios seu coração em
carne viva, escondia as chagas das suas mãos em poemas, soterrava em solidão
as fraturas expostas da alma. Mas algo dentro dela voava pelo infinito
e tomava novas formas com a fome de vida que avançava em seus desejos,
como uma luz que atravessa a escuridão. Ela continua pisando duro e
olhando firme, mas aprendeu a dizer que ama quem ama, a esvaziar-se das
mágoas, a perdoar e a perdoar-se, defendendo-se dos reveses da vida,
mas não mais de si mesma.
Aíla Sampaio
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