quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Ele



Ele nunca chegava em horas quebradas ou pronunciava uma frase sem azulejar a sintaxe; eu detestava formalidades e tinha um português sofrido. Ele media, somava, ajustava os óculos e guardava um olhar para o encardido das lembranças; eu fazia tudo por intuição, desordenada e perdida como todas as mulheres que não nasceram para os serviços de casa. Ele nunca me disse a que veio, mas eu sempre soube. Todo mistério tem as suas brechas. Toda fresta tem um olho curioso pra encostar. Tínhamos, os dois, uma vida só pelo lado de dentro, mas éramos diferentes demais para ser tão parecidos e conviver sob o mesmo teto!



Aíla Sampaio
 
 
 

Carta ao tempo II



Foto: Wiron Batista (1991)



Ah, tempo tu não tens sido relativo pra mim. Andas escasso sempre e tens me tirado de onde quero demorar-me. Tens arrancado as minhas melhores páginas para que eu escreva novas, quando tudo o que eu queria era passar aqueles rascunhos a limpo. Tá certo, eu precisava aprender que tu não voltas, mas por que não me deixaste entender isso, na hora adequada, pra que eu pudesse "salvar" os arquivos antes que tu os deletasses? Não quero a vida no preto e branco da pressa, soterrada nas buzinas dos carros, na lista do supermercado, nas contas a pagar. Não sei viver no vermelho dos desencontros e das decepções, nas obrigações afiveladas na agenda. Quero demorar-me no cheiro de lavanda dos lençóis, nos poemas de Drummond e Adélia, no café da manhã com os meus filhos, no abraço do homem que amo. Quero ser dona das minhas horas, senhora de meus minutos e arbitrar sobre as minhas pausas.... Não quero desavenças contigo, por isso te peço: vamos nos entender! Deixa que os meus momentos me pertençam, que eu decida a velocidade dos ponteiros do meu relógio!!!

Aíla Sampaio